Jorge Amado e a negritude – notas para um percurso literário, político e social

| por Evandro Neto*

Ainda que a literatura seja o território em que Jorge Amado consegue expressar, de forma mais dinâmica, o seu vínculo com a cultura afro-brasileira, a temática da negritude, em níveis variados de compreensão, está relacionada também ao percurso político e à vida social do escritor baiano.

De fato, a ocupação de espaços, na literatura, por mulheres e homens negros parece ser uma das principais manifestações ideológicas da produção literária de Jorge Amado. Inserida no universo religioso do candomblé, no realismo crítico que promove a denúncia social, no discurso engajado da militância política ou na figuração poética do mundo, a negritude quase sempre ocupa o primeiro plano das narrativas de romances como Suor, Mar morto, Jubiabá, Terras do sem-fim, Tenda dos milagres e Tereza Batista cansada de guerra – para ficar apenas em alguns exemplos. A leitura atenta dessas obras permite observar que as formas de representação da individualidade negra, ainda que esbarrem no modo como a mentalidade de um intelectual branco interpreta o assunto, não apenas valorizam elementos fundamentais da cultura afro-brasileira, mas também sublinham o racismo e as desigualdades sociais como agudas contradições da ordem socioeconômica estabelecida.

Dentre esses romances, Jubiabá, no raiar dos 90 anos de sua publicação, continua sendo exemplo de atualidade e protesto, já que, como se sabe, a integração do negro na sociedade de classes, figurada na obra, permanece sendo parte de um dilema histórico não resolvido. Publicado em 1935, o romance, que tem um homem negro como protagonista, marca um ponto de virada na produção literária amadiana. Deixando de lado o esquematismo formal da estética do romance proletário que influenciou os romances anteriores, Amado recorre, na composição de Jubiabá, a elementos da cultura popular e aos métodos adotados pelo romance moderno para dar vida a Antônio Balduíno, herói essencialmente humano, cuja trajetória surpreendeu positivamente até os críticos mais ferrenhos de sua obra.

Descontando-se certa dose de exotismo e carnavalização que marca a configuração de algumas personagens, a composição psicológica do protagonista elucida, de forma ainda embrionária, a preocupação do autor em deixar registrados na prosa romanesca da década de 1930 a complexidade e os conflitos de um sujeito negro. Esse método elementar utilizado para compor a psicologia de Baldo, no entanto, só será amplamente desenvolvido na representação do drama social encenado pelo negro Damião, jagunço de Terras do sem-fim, livro de 1943. Aqui, em lugar da caracterização objetiva do herói negro, a primazia é dada à investigação da consciência da personagem, que é transformada em palco de um dos conflitos éticos mais bem elaborados já vistos na literatura.

Ainda na década de 1930, o saldo positivo de Jubiabá extrapolou os círculos da crítica literária e, em 1938, por ocasião das comemorações do cinquentenário da abolição da escravatura, a Rádio Tupi anunciava, nas páginas de alguns jornais, a leitura de “cenas de macumba interpretadas de acordo com o romance Jubiabá, de Jorge Amado”, como parte de um espetáculo radiofônico.

Com efeito, o despertar do interesse de Jorge Amado nos estudos sobre a condição do negro no Brasil remonta a essa época. Segundo Myriam Fraga, no livro Jorge Amado – Memórias da alegria, a participação de Amado no Primeiro Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Recife, em 1934, coincidiu com o começo do seu interesse pelo universo do candomblé, influenciado pelo amigo Edison Carneiro. A partir daí, a cultura e a ritualística das religiões africanas se tornaram partes essenciais de quase todas as suas criações, alcançando mesmo ares de sistematização, como ocorre com o livro Bahia de Todos-os-santos – guia de ruas e mistérios, de 1945.

Mas não é somente no universo da produção cultural que o escritor baiano manifestou o seu interesse por essas questões. Como é sabido, a sua atuação como deputado federal pelo Partido Comunista, em 1946, foi responsável pela emenda à Constituição 3.218, que trata da proteção do livre exercício de crença religiosa. Considerando que o histórico de marginalização e criminalização experimentado pelas religiões afro-brasileiras, essa emenda é um grande marco e vitória significativa para as lutas antirracistas.

Ainda nessa linha, é importante registrar que a representação da cultura afro-brasileira em suas obras interferiu de modo decisivo na formação de autores e autoras nos países africanos de língua portuguesa, em um período em que ainda lutavam por sua independência política. De acordo com Edvaldo Bergamo, a partir dos anos 1950, Jorge Amado se tornou uma importante figura literária para a mediação política e cultural Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa – PALOPs.

 Tendo em vista que a ausência de escritoras e escritores negros na historiografia literária brasileira é reflexo de uma sociedade excludente, dirigida por uma minoria que orienta e estabelece as regras do processo de divulgação e produção cultural, é possível afirmar que as contribuições estético-literárias e as lutas que Jorge Amado travou contra as desigualdades sociais e raciais e em favor da popularização da cultura negra, dentro e fora da literatura, adquirem aspecto de contestação e dissonância. Isso, obviamente, em uma época anterior à relativa democratização da produção literária brasileira que promoveu a popularização das obras de autoras e autores afrodescendentes os quais, ao assumirem o lugar de agentes do discurso, trazem outra dinâmica para as formas de representação da negritude na literatura.

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*Professor de Literaturas de Língua Portuguesa, graduado, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Ator, possui passagens pelo Centro de Pesquisa Teatral – CPT, pelo TUSP (Teatro da Universidade de São Paulo) e pelo coletivo Teatro Kaus